sábado, 12 de maio de 2012


A Tragicomédia da Medicalização: A Psiquiatria e a Morte do Sujeito.

  
Resenha do livro:
A TRAGICOMÉDIA DA MEDICALIZAÇÃO:
a psiquiatria e a morte do sujeito.
 Autor: José Ramos Coelho. Ed. Sapiens, Natal 2012

As reflexões desenvolvidas nesta obra partiram da constatação, por parte do autor, de uma contradição flagrante entre os enunciados do discurso médico-psiquiátrico e as evidências clínicas colecionadas no atendimento a pacientes medicados. Ao perceber que pacientes usuários de psicofármacos apresentavam uma notória dificuldade em assumir o controle de suas vidas e reagir positivamente ao tratamento psicoterapêutico, e, ao contrário, pessoas sofrendo de graves conflitos em função de choques emocionais – morte de parentes próximos, ou separação, por exemplo – e que não haviam tomado psicoativos, rapidamente se refaziam e se libertavam do sofrimento, resolveu investigar acerca do tema da medicalização da existência.
Além da explicitação detalhada dos efeitos maléficos dos psicoativos nos processos de autoconhecimento e autotransformação das pessoas, o autor investe contra o que chama de “polematação” dos indivíduos: a transformação dos seres humanos em mercadorias, incentivada pelo discurso médico-psiquiátrico ao sustentar que os distúrbios mentais são resultantes de um “desequilíbrio químico” no cérebro – e não em função do estilo de vida, das escolhas, ações ou omissões adotadas ao longo da vida. O livro identifica dois níveis perniciosos de iatrogenia na intervenção médica: os que são decorrentes dos efeitos colaterais dos psicoativos e a “polematação” subjetiva dos indivíduos, que, tomados como meros pacientes, são reduzidos ao nível de coisas à espera de tratamento.
Para elaborar a sua crítica, Ramos satiriza o discurso médico, sustentando que o mesmo forjou uma nova pandemia – a “pathoneurose (pathos = emoção, sentimento, dor, sofrimento + neurose), a qual consiste basicamente em considerar como “doentes mentais” pessoas que sentem emoções intensas ou duradouras. Esta superabundância de vida é vista como uma anomalia pela ciência médica, uma desmesura, que deve ser tratada com a “medicamentose” - o retorno à normalidade, efeito disciplinar operado pela Nêmesis médicaTal como no inolvidável Alienista de Machado de Assis, toda pessoa apresenta algum transtorno mental ao longo de suas vidas. Essa grave doença contemporânea é caracterizada de forma pitoresca, ao longo da obra, por três sintomas básicos: a cegueira, o mutismo e a surdez.
A relação entre a “pathoneurose” e a “medicamentose”, ou seja, a invasão psiquiátrica dos espaços sociais, é abordada ora sob uma ótica trágica, ora numa perspectiva cômica – daí a explicação do título, a tragicomédia
.
A tragédia ocorre em função da contradição entre o interesse do sujeito que procura ajuda e quer ser escutado/cuidado e, de outro, do profissional que, pelo seu lugar e papel social, age quase sempre como um surdo, e cujo trabalho irá aprisionar e medicar, ou seja, irá suprimi-lo enquanto sujeito.
Esta tragédia da subjetividade é descrita em quatro atos: no primeiro, o paciente, sentindo algum malestar, se deixa envolver numa teia de relações buscando ser ouvido/assistido; no segundo ato, o seu enredo é “decodificado” a partir de um cânon médico pré-estabelecido no qual o que ele fala só se torna inteligível quando nomeado ou inserido numa categoria nosológicaou seja, em algum tipo de doença ou patologia; no terceiro, após o exame e análise dos seus sintomas e sinais, o paciente é diagnosticado no seu mal-estar, classificado e batizado; finalmente, no último ato, concluindo a terapêutica, ele é medicado a fim de voltar a ser sadio e normal.

Primeiro Ato: Dos Cegos, Surdos e Mudos.
E se todos nós fôssemos cegos? E se, além de cegos, fôssemos todos surdos e mudos? Esta hipótese não é pura ficção extravagante, mas corresponde ao modo vigente de como opera a práxis psiquiátrica.
Para desenvolver o seu pensamento, o autor elabora uma série de neologismos, dentre os quais sobressai a distinção entre o paciente e o “esperienciante”: o primeiro termo denota alguém que recebe ou suporta a ação de um outro agente; o segundo, ao contrário, é o agente da ação, e o médico ou psiquiatra um facilitador do processo de cura.
Pode dar-se, portanto, ou uma relação interpassiva (onde um cego – o paciente - vai procurar um surdo - o psiquiatra - para continuar cego) ou uma relação intersubjetiva (onde um cego – o “experienciante” - vai procurar um especialista no intuito de ser assistido/escutado e voltar a ver). Como num divertido jogo de xadrez, analisam-se as várias possibilidades que se abrem nestes (des)encontros terapêuticos.
Importante também é a distinção estabelecida entre o psiquiatra, que trata e aborda aquele que sofre como um “experienciante”, através de uma parrêsia, ou seja, através da escuta e diálogo sinceros, e o “encefalatra”, que é uma espécie de veterinário high tech, já que lida com o homem como se fosse um animal ou uma coisa em estado de desequilíbrio, e não na sua dimensão subjetiva como o primeiro.
E para fundamentar a sua crítica ao discurso médico, o autor propõe o retorno às origens hipocráticas da medicina, onde o médico, ao invés de seccionar com o bisturi do olhar hiperespecializado a doença do ambiente onde ela é gestada, via a doença como um texto dentro de um contexto e numa relação intertextual.
O mais importante, neste retorno a Hipócrates, é a questão metodológica: o pai da medicina tinha uma visão dialética da natureza humana, ou seja, compreendia as relações íntimas entre a parte e o todo, e o todo e a parte. Esta visão filosófica da medicina antiga é afim às concepções defendidas pelas medicinas integrativas - como a homeopatia, a terapia floral, a acupuntura, a medicina chinesa e a medicina ayurvédica.

Segundo Ato: Do Enquadramento.
Ao alertar que a língua é um sistema de signos que molda, condiciona e produz determinadas formas específicas de ver o mundo, senti-lo e pensá-lo, formando ou deformando a nossa maneira de conhecer e mesmo visualizar as coisas, o autor pretende neste capítulo explicitar as injunções e ingerências que determinados usos da linguagem acarretam na percepção e ordenamento da realidade.
Uma grande novidade é o conceito de “medicina cultural “ - o poder simbólico capaz de orientar, transmitir segurança, proteção e defesa contra ameaças à sobrevivência social -, e a descrição de como ele opera. Baseando-se em dados antropológicos e históricos, sustenta o autor que nele sempre residiu, ao longo da existência do homem enquanto espécie, o grande poder de cura e proteção dos indivíduos. A seguir, discorre a respeito do genocídio e do etnocídio, as duas maiores ameaças à sobrevivência do ser humano.
E o livro faz um diagnóstico: o que está ocorrendo em nossos dias é a pandemia de uma nova peste - uma AIDS simbólica, cujo efeito é a desregulação da imunologística, ou seja, da “medicina cultural ”.  Essa variante cultural da síndrome de imunodeficiência, ao contaminar a vida social, causa uma debilidade sistêmica que abre caminho para todos os tipos de invasões e agressões oportunistas. E, nesse contexto de enfraquecimento cultural e subjetivo, ocorre a invasão pharmacolonialista.
Inspirando-se em Kierkegaard e Heidegger, o texto sustenta que o conceito de verdade como adequação do diagnóstico aos sintomas e sinais do paciente, que é o modelo adotado pelo discurso médico-psiquiátrico, só poderia se justificar epistemologicamente se fosse fundado no conceito de verdade enquanto aletheia, ou seja, enquanto desvelamento do “experienciante” acerca do seu malestar.
E porque só pouquíssimos psiquiatras hoje em dia fundam a sua prática na escuta sincera do “experienciante”? O que impera nas relações entre o saber psiquiátrico e a verdade do “experienciante”, diz o texto, é uma injunção econômico-política: os tentáculos do pharmacolialismo, ao estenderem o seu domínio às universidades, aos congressos científicos, centros de pesquisa, financiando campanhas publicitárias e controlando sub-repticiamente a mídia, colonizaram todas as consciências, tanto a do profissional quanto a daqueles que sofrem e buscam tratamento. Trata-se de um problema ético e político.
A atividade profissional dos psiquiatras é apresentada como norteada pelo DSM, sua nova Bíblia, o qual consiste numa lista de distúrbios e “doenças mentais”, acompanhada da descrição de suas características básicas. Mas qual é o critério de verdade que serve de base ao DSM? Este manual enciclopédico é fruto do consenso de um grupo de psiquiatras. Mas o “consenso” pode ser tomado como um critério científico de verdade? O autor afirma que a suposta cientificidade desta classificação dos distúrbios e transtornos mentais baseia-se numa epistemologia dos pastores que ditam, a seu bel-prazer, uma ética para as manadas. As ovelhas desgarradas são a clientela dos psiquiatras, as quais, graças à medicação, voltarão a seguir docilmente o rebanho rumo ao matadouro. 
E mais: o uso atual do DSM pelos psiquiatras e demais profissionais, além de perpetrar um “aleticídio”, ou seja, a destruição da verdade enquanto desvelamento subjetivo, está decretando a morte da própria psiquiatria entendida enquanto especialidade médica que tem por objeto a alma humana. Desta forma, sugere que, por uma questão de rigor, em razão de seu anacronismo, a palavra psiquiatria deva ser substituída pelo termo encefalatria: assim ficaria explícita a afinidade da nova psiquiatria com a neurociência, a medicina e a genética.

Terceiro Ato: Do Diagnóstico. 
Através do diagnóstico, o dizer e o ser dos pacientes são capturados por um discurso colonialista que, para impor-se, obriga aos dominados se expressarem numa linguagem que os escraviza, fazendo-os não mais reconhecerem-se e verem-se com os seus próprios olhos, mas através do olhar e dos valores de um sistema que os expropria de si mesmos.
Baseando-se na proposição de Kierkegaard: “Tentar me definir, é querer me limitar”, Ramos enfatiza que a elaboração do diagnóstico clínico opera uma mudança radical tanto em nível do que se supõe ser a realidade do paciente (ontológico) quanto do conhecimento sobre ele (epistemológico), com efeitos profundos sobre o seu tratamento.
Um diagnóstico qualquer, como o de “depressão” por exemplo, ao adquirir uma existência conceitual própria, tende a encapsular o paciente como um todo e a substituí-lo, porquanto a partir de agora o psiquiatra não vai mais tratar do paciente que padece de um sintoma, mas sim do sintoma de que ele padece – a (sua) depressão. Destacando abstratamente a depressão do seu contexto real, o psiquiatra ao mesmo tempo elimina o paciente enquanto sujeito de sua depressão, centrando o seu foco apenas no combate ao sintoma.
Com isso o paciente é engessado, amordaçado, cristalizado dentro de um diagnóstico que só poderia se justificar epistemologicamente através do desvelamento de sua verdade. O sujeito é eliminado do processo.
E conclui: devemos desconfiar de todos os nomes, etiquetas e rótulos, pois entre o termo “deprimido” e a pessoa real que está triste, desanimada ou desesperançosa, a distância é abissal, tanto pelo caráter arbitrariamente convencional dos signos quanto pela riqueza compreensiva da pessoa real em comparação à pobreza extensiva do termo, rótulo ou diagnóstico que pretende designá-la.

Quarto Ato: Da medicalização.
Nesta altura, Ramos elabora uma crítica devastadora à medicalização da vida, enfatizando os malefícios e perigos do uso de psicofármacos para aqueles que desejam o autoconhecimento e a autotransformação.
De início, esgrime três argumentos concatenados: 1) os medicamentos não funcionam da mesma maneira para todos. Os indivíduos são diferentes e reagem de forma desigual aos estímulos. Uma substância administrada para amenizar a depressão pode, por exemplo, induzir ao suicídio a determinadas pessoas. Assim, o princípio ativo pode provocar reações inversas às pretendidas. Confiar num medicamento é sempre uma aposta perigosa e imprevisível; 2) Mesmo que o medicamento funcione para um certo conjunto de pessoas, como está dissociado de uma dietética existencial, ou seja, de um estilo de vida, quando o indivíduo é medicado (ou se automedica) e constata um efeito positivo no melhoramento dos seus sintomas, sente-se imediatamente autorizado a desequilibrar-se ainda mais, já que tem à mão um recurso que pode contornar e aliviar os excessos cometidos. O remédio converte-se na senha para empreender toda a sorte de desatinos. 3) Finalmente, para o restrito grupo daqueles pacientes que não apresentam reações adversas aos medicamentos, nem se permitem transgredir as determinações médicas, a medicação, ao contrário do que se sustenta, é o maior empecilho para um efetivo avanço terapêutico. E o motivo é que nós nunca desejamos tanto estar saudáveis como ao nos sentirmos doentes. Se o medicamento diminui ou cessa o mal-estar, elimina também aquilo que poderia ser a motivação para a busca do bem-estar. Se o medicamento minimiza o sofrimento, diminui também a capacidade de sentir prazer.
Após apresentar uma série de argumentos salientando os malefícios dos psicoativos para a vida do paciente, Ramos oferece uma síntese do amplo leque da iatrogenia psiquiátrica contemporânea: 1) circunscrição da práxis psiquiátrica a uma etiquetagem nosológica limitante das possibilidades de autoconhecimento e autotransformação dos pacientes; 2) disseminação da crença de que os distúrbios mentais são causados por um desequilíbrio químico do cérebro, tese reforçadora da “polematação” do homem e de sua instrumentalização enquanto consumidor passivo de medicamentos e serviços de saúde; 3) negação da verdade subjetiva do paciente em virtude da opção metodológica por um tratamento que prioriza a adequação comportamentalista a uma normalização disciplinar; 4) perda da autonomia e do governo de si decorrente da prescrição de psicoativos – condição aqui denominada de “morte do sujeito”; 5) invalidação parcial ou progressiva do paciente, ocasionada pelos “efeitos colaterais” suscitados pela indicação e uso dos medicamentos , ou seja, pela interdição química e progressiva da existência.
Se a realidade é assim, se buscar um “tratamento psiquiátrico” significa a morte do sujeito, porque as pessoas muitas vezes, de livre e espontânea vontade, buscam os psiquiatras e optam pela “servidão voluntária” para se curar de seus males? Qual a explicação para essa ironia trágica?

O que está por trás desta ironia é, segundo Ramos, a comédia da existência: ser rotulado de “doente mental” afigura-se, para muitos pacientes carentes de amor e de cuidados, como a oportunidade que sempre sonharam. Ser tido como “doente mental” significa que não permanecerão mais abandonado à própria sorte; que a partir de agora serão objeto de atenções especiais médico-psiquiátricas.
Além do mais, sofrer de um malestar inominado é algo muito inquietante. A nomeação do nosso sofrimento, a etiquetagem nosológica dos nossos sintomas pelo discurso psiquiátrico, acarreta frequentemente um alívio: o inominado, o indeterminado, o invisível agora tem um nome e adquiriu “um corpo” simbólico. A partir de agora, pode ser apreciado, estudado e tratado pela ciência médica. O autor apresenta uma série de outros argumentos para explicar a “servidão voluntária” a um “tratamento de saúde” que, na verdade nada mais é do que a supressão ou morte do sujeito.
É esta comédia da existência que sustenta a tragédia da medicalização da vida. 

O Desenlace
Ao final, a que conclusões chega o autor? O que essa tragicomédia da contemporaneidade tem a nos ensinar?
Bem... A fim de evitar que os gentis leitores permaneçam confinados ao papel de pacientes ouvintes destas palavras, mas que possam ter a oportunidade de tornarem-se “experienciantes” de seu próprio processo de conhecimento e elaboração mental, deixamos para cada um a possibilidade de vir a conhecer e construir para si mesmo, a partir de uma leitura direta, suas próprias conclusões e impressões a respeito deste polêmico e instigante livro.
In: http://www.curadores.com.br/site/cont2_pt.php?p=id&v=58

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