sábado, 30 de março de 2024

 O SENHOR ABSOLUTO


Dentre todos os sentimentos, um dos mais fortes, disruptivos e dominantes é o medo. Hegelianamente falando, o medo da morte é o Senhor Absoluto – a única força capaz de conter a ânsia por liberdade.
Com efeito, o medo da morte, segundo Schopenhauer, é a mãe das filosofias e religiões, pois todas buscam dar explicações para o flagelo da finitude.
Pois a morte é precisamente isso: um limite, um fim, um termo.
Vemo-la como algo externo, uma entidade sinistra que vem ao nosso encontro e nos ceifa a vida. Essa visão popular oculta e mascara uma realidade cotidiana: ela é o contorno do ser, a tampa que impede o transbordamento da garrafa.
Ela nos sonda a todo momento. Submetemo-nos a ela muito além de nossa compreensão.
Quando pressentimos em alguém um ímpeto de expressividade e fingimos não ver, abortamos no outro o que ficou por dizer.
Quando as crianças são impedidas de falar sob a alegação de nada saber, suas vozes são castradas.
Quando paramos e dizemos: “só vou até aqui!”, eliminamos o caminho que poderia ser trilhado.
Quando fazemos uma escolha, negamos outras.
Quando mato uma esperança, anulo um sonho.
Quando um encontro se realiza, vem a despedida.
Quando digo “não consigo”, escondo-me por atrás de uma impossibilidade a fim de não tentar.
A morte acompanha o ser a todo momento e o configura no que ele é ou deixa de ser.
Por outro lado, as mais exuberantes manifestações de vida correm no sentido oposto, arrostando todas as barreiras.
A flor que, pela manhã, desabrocha, abre suas pétalas e exala a sua fragrância em todas as direções, atraindo os polinizadores, é uma epifania exuberante da pujança da vida.
O fungo que espalha pelo ar milhões de esporos, visando perpetuar-se é um espetáculo grandioso de vida e adaptabilidade.
A mãe que arrosta todos os perigos e gera o seu desejado bebê, é uma eloquente manifestação de dedicação e amor.
A torrente de inspiração que invade a mente do artista e o impele a criar, é outro exemplo da riqueza inesgotável da vida.
Enquanto a morte é limite, contenção, encobrimento, a vida é manifestação, revelação, epifania.
O medo é inimigo mortal do coração, pois gera insegurança, encolhe e atrofia o ser.
Minha querida mãe tinha um amigo, o Padre Daniel, conceituado filósofo, poeta e teólogo. Quando ocorria dele encontrar-se lá em casa com o Padre Zé Maria, os dois se punham a brincar de pega, como se fossem gato e rato. Estranhíssimo.
Certo dia, o Pe. Daniel pediu uma penca de bananas para lanchar. À frente de todos, ele pegou uma banana, descascou-a, jogou fora a banana e passou a comer a casca. As pessoas, perplexas, não acreditavam no que viam. Ele pegou outra banana e repetiu o mesmo gesto. “Padre”, disse alguém, “o senhor está comendo a casca da banana...”. Candidamente, ele respondeu: “Sim. Tem mais vitaminas!”.
Um dia visitei-o em sua residência, a qual mais parecia um sebo antigo, com livros espalhados por todos os cantos da casa. Ao abrir o refrigerador, surpreendi-me ao encontrar lá dentro uns óculos. E o interpelei: “Padre, o senhor guarda os seus óculos no refrigerador?”
“Sim, meu filho. Eu sou quase cego, sabe? E quando perco os óculos, tenho que ficar tateando a casa inteira. Como refrigerador é um compartimento bem pequeno, eu o encontro lá com facilidade. Além do mais, num calor como o de Recife, é bom ter uns óculos geladinho!”
- O senhor é muito estranho!, disse-lhe eu, perplexo.
Ele deu uma grande risada e me respondeu: “Gosto que os outros pensem que sou louco. Assim eu posso fazer o que eu quero!”
Bingo! Finalmente compreendi o bizarro comportamento deste velho sábio.
De fato, é preciso ser muito louco para desejar ser normal.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

 O AMOR CONTIDO: considerações ao livro “Descolonizando os afetos” da pensadora guarani Geni Nuñez.

Certos temas são considerados tabus, ou seja, estão vedados à questionamentos e discussões. Dentre esses, talvez um dos mais sagrados à civilização ocidental seja o da monogamia. Assim, mesmo correndo o risco de desestabilizar opiniões profundamente arraigadas, ousarei comentar o notável ensaio da psicóloga e pensadora indígena Geni Nuñez, já que a mesma, sendo de outra tradição cultural - o que lhe permite um olhar diferenciado -, toca em pontos cruciais a respeito desse assunto.
A autora empreende com suavidade, poesia e pertinência a denúncia ao etnocídio colonialista perpetrado no Brasil contra os povos originários. Enfatiza o esforço dos jesuítas em erradicar as não-monogamias indígenas – o fato dos índios poderem se relacionar livremente com vários parceiros, sem conflitos ou repressão -, pois as mesmas representavam uma ameaça frontal à implantação de uma monocultura imperialista centrada na monogamia.
Para o projeto colonialista no Brasil, tornou-se absolutamente necessário negar todo o modo de vida dos povos originários, desde os dialetos nativos pela imposição da língua portuguesa, até a condenação da grande oca onde todos conviviam e se aglutinavam em torno das narrativas míticas e dos seus rituais, apontada como a morada do diabo e local de promiscuidade. Assim, após queimadas e destruídas, essas grandes ocas coletivas deram lugar a casas isoladas, dividindo-se a aldeia em pequenos núcleos familiares, tornando assim a tribo mais vulnerável à influência externa e à destruição dos seus costumes, quebrando na base a sua unidade cultural.
Acima de tudo, porém, era imperiosa a implantação da monogamia, imprescindível à adoção do batismo, sem o qual a dominação religiosa tornar-se-ia impossível.
Por que a monogamia é tão importante nesse contexto?
A razão reside no fato da monogamia ser a projeção na estrutura familiar do monoteísmo: da mesma forma que, no discurso fundamentalista do racismo religioso, só existe um Deus, condenando-se todos os demais deuses e religiões, só pode haver uma única forma de estrutura familiar, constituída pelo casamento entre um homem e uma mulher, sendo considerado adultério qualquer relação fora do casamento.
Exclusivista, o Deus cristão não admite a convivência com outras religiosidades. Impõe-se como o único caminho, tendo por missão converter todos os outros credos à sua verdade.
O próprio conceito de adultério, segundo Nuñez, é empregado primeiramente nesse contexto religioso para se referir à adoração de outros deuses por parte dos infiéis. A partir daí se desloca da religião para as relações familiares.
É possível a alguém, que cria vários gatinhos, amar intensamente a vários deles? Da mesma forma, alguém que é apaixonado por plantas, pode adorar ao mesmo tempo uma orquídea e um cambucazeiro? Indo mais além: seria lícito alguém amar e se relacionar com duas pessoas simultaneamente? Para a monocultura cristã, não: pois essa possibilidade destruiria o vínculo matrimonial e o compromisso de fidelidade “até que a morte os separe”.
Ocorre que, da mesma forma que o empreendimento colonial visa no fundo à exploração e subjugação dos povos colonizados, a monogamia tradicionalmente sempre serviu ao domínio patriarcal sobre as mulheres. Ao casar, a mulher – até há bem pouco tempo – mudava de nome, recebendo o nome da família do seu marido. A partir de então era como se ela lhe pertencesse. Esse compromisso de fidelidade é a origem de todas as formas de controle e cerceamento da liberdade, e a razão principal do feminicídio, muitas vezes praticado em nome “da honra” ou por que “[o marido] não aceitava o término da relação”.
“Em Coríntios 1, capítulo 7, versículo 4, há - afirma Nuñez – um trecho que diz: “a mulher não pode dispor de seu corpo: ele pertence ao seu marido. E da mesma forma o marido não pode dispor do seu corpo: ele pertence à sua esposa”. Como consequência desta concepção, 90% dos feminicídios são praticados por companheiros ou ex companheiros das vítimas. Por outro lado, conforme aponta a autora, esse tipo de crime é completamente ausente no contexto tribal, onde impera relações não-monogâmicas.
A propósito, a violência não só é dirigida contra as companheiras: “a monogamia faz parte da conjuntura da família defendida pelo Estado, caracterizada também pela heterocisnorma que orienta a misoginia e as demais violências sofridas por pessoas sexo-gênero dissidentes. O Brasil, país onde cerca de 90% da população se afirma cristã, é um dos líderes mundiais nos índices de assassinatos contra mulheres cis e pessoas trans.”
A monogamia está a serviço de que?
Sem dúvida, do capitalismo patrimonialista. O celibato dos padres e a monogamia atende perfeitamente ao desejo de acumulação da riqueza, uma vez que, ao fazer o inventário para a partilha da herança, poucos seriam os herdeiros. Contudo, esse modelo é útil a quem os adota? Torna as pessoas mais felizes?
Eu, há alguns anos atrás, observei no meu entorno – tal qual Diógenes com a sua lamparina – procurando um casal que fosse um exemplo e protótipo de uma estrutura monogâmica feliz. E disse para mim mesmo: sim, ele existe. Os pais se tratam de forma amorosa, cordial e respeitosa, o mesmo ocorrendo entre eles e os filhos. Pareceu-me uma família admirável e perfeita. Logo me dei conta, porém, que a aparente harmonia residia no ocultamento da verdade. Quando ela foi revelada, a unidade familiar ruiu.
O fato é que o casamento hoje em dia está em crise e os jovens se mostram arredios em relação a ele. Nas suas experimentações amorosas, estão procurando alternativas criativas em contraposição à falência generalizada da família.
Na verdade, a monogamia, proposta para preservar o amor, não apenas tem sido a motivação básica para a prática interpessoal de violência; fundamentalmente, essa violência se volta também para o interior da própria pessoa sob a forma de desânimo, infelicidade e autoabandono. Esses são os efeitos do que a autora chama de “afeto colonizado”.

Se é possível amar o rio e o mar, as paisagens e as florestas, os animais e as plantas, em nome de que a necessidade de submeter os afetos a um disciplinamento rígido e sufocante?
Não pretendo aqui antecipar as análises da autora acerca das perspectivas da não-monogamia. Recomendo o(a) curioso(a) leitor(a) beber diretamente da fonte.
Concluo citando a libertária Nuñez:
“Celebrar nossas paixões é tão legítimo quanto nadar no rio: a mesma natureza que nos deu a vida nos presenteou com a liberdade. Por isso, o primeiro território que descolonizo é a minha pele”.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

LUCIDEZ OU ESTUPIDEZ?

 

LUCIDEZ OU ESTUPIDEZ?

A lucidez de uma pessoa é inversamente proporcional ao grau de condescendência que ela tem consigo mesma. Em outras palavras, a sua reserva de lucidez é diretamente proporcional à intensidade de contrariedade que ela cotidianamente impõe a si mesma.

Essa é uma questão crucial. Talvez o tema mais importante para alguém que deseje realmente tornar-se um ser livre e racional.

Voltemos então a repeti-lo: o nível de consciência de uma pessoa depende de quão constantemente ela se põe à prova, se questiona, duvida dos seus valores ou crenças e testa os seus limites.

É preciso reconhecê-lo: atingir algum grau de lucidez não é nada fácil. Alcançá-la exige desapego, ousadia, coragem e uma boa dose de esperança.

Desapego – de todos os hábitos arraigados. Ousadia – em experimentar algo inteiramente novo. Coragem – em saltar no abismo do desconhecido, abandonando o solo firme do já consolidado, do assimilado, do mundinho familiar. E esperança em acreditar que é possível sair do cativeiro.

Em suas Meditações Metafísicas, o filósofo Descartes, um dos maiores gênios da humanidade, faz uma proposta altamente audaciosa: que colocássemos em dúvida todos os nossos conhecimentos anteriores, submetendo-os a uma dúvida metódica a fim de verificar, após esse processo exaustivo de auto inquirição, o que existe de verdadeiro ou falso naquilo que aceitamos. Quem teria a coragem e determinação para um empreendimento dessa magnitude?

Talvez esse seja o desafio mais difícil e inquietante a que um ser humano possa se dedicar. É por isso que, em sua imensa maioria, as pessoas encontram-se num processo de completo estupor, ou seja, vivem como meros autômatos, seguem padrões pré-estabelecidos, preconceitos, programas pré-fabricados, agindo como robôs. A sombra da inconsciência as domina por completo. Enroladas no círculo vicioso das repetições sem fim, elas vivem como Sísifo realizando o seu eterno castigo.

Não causa surpresa, portanto, o fato de que muitas delas, mesmo quando desejam livrar-se dessa Roda de Samsara, não o conseguem. Acabam voltando ao mesmo ponto: seja o desejo de não cometer os mesmos erros de sempre, de seguir a dieta tão sonhada, de realizar tudo aquilo que sabe perfeitamente ser benéfico para si... e não o conseguem. A força da inércia é maior do que elas mesmas.

Como um ser que não tem mais controle sobre si mesmo, pode considerar-se um ser racional, um “homo sapiens”? Com muito mais razão, dever-se-ia defini-lo como um “homo demens”, um ser cujo sintoma mais característico é a perda de sua liberdade e a renúncia à autogestão de sua própria vida.

O terrível, o sinistro, o assustador é constatar que somos o tempo todo condicionados a sermos peças de uma engrenagem que se retroalimenta. E, ainda pior: muitos se vangloriam e se comprazem com esse condicionamento em massa, dependendo do nível em que se situa dentro dessa hierarquia de controle que os domina e à qual voluntariamente servem.

Apesar de toda essa tendência onipresente, é possível acender uma luz na escuridão. Está ao nosso alcance, em cada instante de nossa vida, seguir a roda viva - ou não. Podemos fazer diferente. Exercitar a divina arte de sermos únicos, originais, inconfundíveis.

Concluo com a profunda e penetrante reflexão do grande Dostoiévski:

“Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram”.

José Ramos Coelho – 02 de agosto de 2020.

OS BLOQUEADOS E IMPEDIDOS

No apoteótico rito de passagem que ocorre todo final de ano, as pessoas do mundo inteiro se reúnem para celebrar o ano que se inicia e dar-lhe as boas vindas, fazendo os seus votos de um ano melhor e mais feliz.

A grande maioria, no entanto, fracassa nos seus votos, fazendo desse rito de passagem um retorno ao ponto de partida. Qual a razão desse malogro generalizado e coletivo?

O motivo fundamental é que todos nós, em graus variáveis, somos bloqueados e impedidos.

O nível mais grave de impedimento reside naqueles que se identificam completamente com a sua posição na existência. Acreditam que "pau que nasce torto morre torto", e orgulham -se de seus defeitos e vícios. Quando falam de si, sorriem ou mesmo gargalham - o que patenteia o seu apego ao seu estilo de vida. São os reincidentes.

Há um grupo intermediário que deseja realmente que as coisas melhorem, se esforça,, traça planos e se empenha verdadeiramente em sua implementação. Nutre o desejo e a esperança reais em evoluir e melhorar. No entanto,, tão logo começa a alcançar os seus propósitos, titubeia, recua, oscila e acaba pondo a perder tudo o que conquistou a duras penas. Ditas pessoas vivem divididas em si mesmas. Uma parte deseja o progresso e outra acredita não merecer nada de melhor. Por isso, ao agir, uma mão faz e realiza, enquanto a outra desfaz e neutraliza.. Esses são os sabotadores.

Há, finalmente, aqueles poucos que fluem pela vida como a agua: quando encontram um obstáculo em seu caminho, o contornam e seguem adiante. Não há dentro de si nenhum entulho que atrapalhe o seu fluir ligeiro. Alcançam sem bloqueios os seus intentos e propósitos. Esses são os libertos.

O que faz uma pessoa ser um impedido, um sabotador ou um liberto? O que leva alguém a não querer sair do lugar, enquanto outros realizam viagens épicas?

Fundamentalmente é a imagem que fazem de si mesmas. As pessoas vivem a vida que acreditam se adequar aos seus pensamentos ou aos seus esquemas mentais.

Aprofundemos um pouco mais a questão. O que leva alguém a optar em ser um reincidente?

Normalmente esses indivíduos tiveram modelos parentais envoltos em fracassos na vida. Dar-se mal em tudo parece ser a regra constante dessas pessoas. Ou, então, tiveram país aparentemente bem sucedidos mas que, aos olhos dos filhos, não eram exemplos a serem seguidos. E , por isso, para afronta-los, preferiram ser bem "errados".

Já os sabotadores situam -se num plano diferente. Vivem imersos numa conflagração interior, onde um lado quer avançar e outro não o permite. Quando, com muito esforço, dá um passo à frente se inquieta e logo anda dois para trás. O que guia o seu comportamento é uma crença de "não merecimento", a qual orienta a pessoa a recusar ou desfazer qualquer realização positiva.

Finalmente, os libertos são gratos e gentis. Seus sentimentos amistosos e amorosos os levam a superar todos os entraves que surgem em seu caminho, contornando-os. São leves e graciosos. Por onde passam irradiam alegria, fertilidade e esperança. Por isso, superam-se a cada dia. E quando chegamos a vê-los depois de algum tempo, já são outros e bem diversos. A vida é, para eles, um constante fluir e crescimento.

Que saibamos aos poucos migrar do peso da estagnação à leveza fluida da incessante auto-superação.

José Ramos Coelho - 04 de setembro de 2020

ENCENAÇÕES

 

ENCENAÇÕES

Shakespeareanamente falando, a vida é um palco – e nós, atores ou figurantes nesse vasto teatro da existência.

Os atos e cenas que represento sempre foram objetos de assíduas reflexões. Como num metafísico jogo de esconde-esconde, continuamente fico a procurar onde me escondi e ocultei de mim mesmo. Talvez seja essa a grande tragédia da existência: acreditar ser o que não se é. Tomar a aparência como se fosse a essência, o ser em seus momentos de ocultamento, e não de revelação. Daí, talvez a grande virtude da socrática ignorância: saber que não se sabe. Olhar para além do fenômeno. Escutar o som do silêncio.

Camuflo-me de mim com frequência ao procurar amoldar-me às expectativas alheias ou me apegar às meras repetições do que fiz. Ou, inversamente, ao esperar que os outros se conformem às minhas...

Quando seguro algo firmemente no intuito de retê-lo, a impermanência da vida logo trata de retirá-lo de mim e dissolve-lo entre os meus dedos. E eis-me frustrado e inconformado.

Na verdade, o que guardamos, perdemos. E o que doamos, levamos. Por isso, talvez o verdadeiro núcleo do existir não esteja encerrado no fundo do ser, mas na potência da relação, no dar e receber, no intercâmbio de afetos e ideias, nas trocas profundas e inenarráveis.

O que sou torna-se então inefável, já que as referências fixas me aprisionam e empobrecem.

Talvez por isso sempre me evadi das cristalizações, dos enrijecimentos esclerosados, manifestando visceral antipatia pela maestria e uma simpatia pelo amadorismo. Quando fazemos muito uma coisa só, tornamo-nos peritos e especialistas na dita modalidade – e ficamos presos a ela. Ela passa a nos consumir e a nos definir. Assim, como um nômade de mim, tão logo percebo estar me assenhorando de algum ofício ou deitando raízes numa determinada atividade, logo sobrevém uma inquietação, um desassossego – e lá vou eu em busca de novas paragens, conhecimentos outros, descobertas.

Quem me vê, dificilmente me reconhece verdadeiramente. Ao querer encontrar uma faceta de mim, visualiza outras que não esperava e se desconcerta neste caleidoscópio em movimento ao qual atribuíram um nome. Se estou em busca de mim, quem me procura num velho lugar já estou em outro, alhures.

Vivo no contrafluxo da multidão que valoriza

a aparência – e não a essência

o ser – e não a relação

a posse – e não busca

a produção – e não a contemplação

a especialidade – e não a generalidade

a ciência – e não o mito.

Meu ofício nesta vida talvez seja o de um simples rasgador de papéis, um faxineiro das máscaras, um eterno aprendiz de mim mesmo.

José Ramos Coelho - 02/07/2022.

PSICOLOGIA DO GADO

 

PSICOLOGIA DO GADO

O entendimento da idolatria de grande parcela da população ao “mito” extrapola em muito os limites da economia e da qualidade de vida. Por que quase 1/3 da população brasileira ainda apoia o inominável? Qualquer pessoa minimamente bem informada sabe que o governo atual é útil apenas para uma parcela ínfima do povo. Se a economia fosse a razão e suporte de tão expressivo apoio, apesar do fracasso retumbante em todos os níveis, ele teria menos de 5% de apoio entre os brasileiros. Mas não: continua firme e forte entre os seus apoiadores. O que explica a adesão dos demais?

Conheço pessoas que perderam o emprego, tiveram seus negócios falidos, pioraram consideravelmente de vida – mas, mesmo assim, continuam votando no “mito”. Trata-se daquele tipo de fascínio que é imune a qualquer argumento razoável e racional. Estão vacinados contra a lucidez, o bom senso e a civilidade.

Há, contudo, uma explicação para esse comportamento aparentemente absurdo e intrigante. E a origem disso reside na psicologia do inconsciente.

‘Narciso acha feio o que não é espelho”, afirmou Caetano Veloso. Há algo de singelo e profundo nesta frase do genial poeta e compositor. Esta afirmação está ligada à teorização de Freud acerca dos dois tipos de amor: o narcísico e o de apoio (anaclítico). O amor narcísico é o amor do semelhante pelo semelhante. O anaclítico é aquele em que gostamos de quem nos apoia, nos respeita, nos considera.

Pois bem. Todos devem conhecer alguém que vive preso a um relacionamento em que o parceiro maltrata, machuca, trai o outro e, mesmo assim, o outro não consegue deixar de gostar e largar o relacionamento abusivo. Esse é um típico caso de atração narcísica: o parceiro maltratado e desconsiderado se identifica com o lado “mau” do companheiro, e no fundo gostaria de ser como ele. Quem o vê, acha que ele é masoquista e “gosta de apanhar”. Esse é, na visão de Freud, um relacionamento narcísico (o lado mau de um admira e cultua o lado mau do outro).

Outras pessoas, no entanto, quando descrevem quando encontraram o seu príncipe ou princesa, falam que o romance foi se construindo aos poucos. De início não chamaram atenção. A cada encontro, percebia algo cativante n@ outr@ - um jeito de olhar, uma disponibilidade protetora e amiga, alguém em quem se podia confiar. A presença do outro transmitia confiança e bem estar. Essa é a típica atração anaclítica (de apoio).

Aí reside a força que o “mito” exerce sobre os seus seguidores. Quando ele faz discursos racistas, quando elogia torturadores, ameaça matar opositores, humilha as mulheres, esse comportamento politicamente incorreto, ao invés de enfraquece-lo, tem o efeito exatamente contrário: realimenta a ligação narcísica entre o “mito” e quem o idolatra.

Por que ele é mais popular entre os homens do que entre as mulheres? Porque a maioria dos homens teme as mulheres, não confia nelas, gostaria de tê-las sob o seu domínio e controle, cometendo todo o tipo de abuso e, mesmo assim, elas continuassem sendo as suas Amélias. As outras que o apoiam se identificam com a sua crueldade, pois trazem em si uma crueldade reprimida, que o outro exibe sem nenhum pudor.

Por que a classe média, mesmo perdendo qualidade de vida, continua a apoiá-lo? É porque observa que os aeroportos não estão mais apinhados de gente simples - aquelas que trocaram a viagem de ônibus pelo avião - e que, agora, está mais fácil de pagar um salário baixo a uma empregada ou de submetê-la a condições degradantes, pois ela está sem ter como se virar se perder o emprego. Ruim com ele. Pior sem ele.

Quando o “mito” exalta o assassinato e a tortura, fazendo acenos golpistas, a mensagem explícita de tirania ressoa profundamente no tiranete que habita cada um de seus seguidores – seja a patroa que gostava de humilhar a empregada, o homem abusador que aprecia humilhar ou assediar as mulheres, a pessoa de pele clara que, para se sentir superior, ofende os negros ou pardos, tratando-os como se fossem inferiores. O lado tirânico da multidão se identifica com a tirania do líder.

Os estudiosos de psicologia do inconsciente, ao pesquisar o efeito das campanhas de propaganda realizadas para dissuadir os fumantes do vício, constataram algo paradoxal e estarrecedor: aquelas imagens terríveis de enfermos em estado terminal, coladas no verso da carteira, ao invés de desestimular o consumo dos cigarros, ativava uma parte do cérebro chamada de “núcleo accumbens”. Essa região é despertada na presença de algo motivador – um alimento, um estímulo sexual, um vício... Se a maldade é erotizada, comportamentos imorais e abusivos deixam essa parte do cérebro excitada e acesa.

Nesta conformidade, todo poder de fascinação do “mito” reside na ativação desse “núcleo accumbens”. É por isso que, dia sim e outro dia também, o inominável precisa reincidir em algum crime, falar alguma asneira, cometer alguma obscenidade. E, por esse motivo, não há razão ou argumento que consiga demover alguém de continuar apegado ao seu ídolo.

Mas nem tudo no bolsonarismo ê maldade explícita: há também o apelo a Deus, à pátria e à família. Nesse ponto, a identificação é pelo medo: pessoas conservadoras temem perder seus privilégios ou ver periclitar os valores e os bens que constituem a base de sua vida. Assim, compreende-se o empenho, especialmente no meio religioso conservador, em disseminar o perigo do homossexualismo, do aborto, da pedofilia. Esse apelo serve de base à narrativa de pertencimento ao exército do bem, em luta contra o mal (os outros, os comunistas, os pervertidos, os corruptos, etc.). O que há ou não de hipocrisia e cinismo nesse discurso é devidamente dissimulado através de um marketing cuidadosamente dirigido e planejado.

Desta forma, com base tanto no ódio quanto no medo, consegue-se distorcer a imagem do Cristo, associando-o à intolerância, ao ódio e às armas. 

"O sono da razão produz monstros" (Goya)

ANATOMIA DO MACHISMO

 

Três elementos saltam aos olhos na anatomia do machismo para uma análise mais detida: o pênis, o ânus e a vagina. A vagina seria o não-pênis, a ausência dele – ou a castração, segundo Freud. Os três são órgãos relacionais, ou seja, fazem a conexão entre o dentro e o fora.

Essa tópica corporal poderia ser associada a uma tópica mental, constituída pela construção ideológica de três papéis distintos, porém interligados: o machão, o gay e a mulher.

Ora, toda afirmação só adquire sentido a partir de uma negação que a sustenta. Se eu digo: “É dia”, essa afirmação só se torna compreensível a partir da percepção de que, de fato, não é noite. Sem a noite não haveria o dia, e vice-versa. Ou, como diria o grande Spinoza, “toda determinação implica numa negação”.

As leis que regem o mundo externo são as mesmas que comandam o campo do psiquismo. Segundo Newton, toda força aplicada a algum objeto recebe a ação de outra força igual e contrária que a resiste. Para que o objeto seja deslocado, a força aplicada precisa ser maior do que a resistência oposta.

Pois bem: o canto de Ossanha do machismo é duplamente traidor. Denuncia tanto o seu embuste quanto sua covardia. Quem diz – sou macho, já não é. Quem é, não o diz. O que é ser machão? É colocar-se numa posição de força, de virilidade, de poder frente a outro. Que outro(s)? Os gays e as mulheres.

Estamos então, esquematicamente, diante da seguinte classificação sexista e ingênua:

Homem – pênis.

Gay – ânus.

Mulher – Vagina.

Portanto, o machismo adota uma visão unipolar: o pênis é o órgão do caçador, é o ativo, o que – supõe-se – penetra. Já o ânus e a vagina, seriam orifícios penetráveis, passivos.

Essas correspondências entre a anatomia e a psicologia só podem ser adequadamente interpretadas e compreendidas a partir do que elas ocultam, quer dizer, de suas fragilidades.

A fragilidade do machão é possuir um ânus. E o seu temor é virar gay.

Ser gay, supostamente, seria optar pela entrega e não pelo lugar de poder socialmente estabelecido. Por isso todo o esforço do machão é afirmar-se como macho, virilizar-se, encher-se de soberba. Prefere mais ser temido do que amado. A máscara de coragem é o melhor disfarce para o seu medo de que descubram quem ele realmente é.

Ao colocar-se numa posição hierarquicamente superior ao(s) outro(s), inevitavelmente se distancia dele(s). Nesse sentido, a idealização do poder pelo machismo resulta da castração da entrega, associada ao ânus e à vagina. Quando a cidadela é fortemente murada, os seus vínculos com as comunidades circundantes tornam-se controlados, vigiados e restritos.

O machismo, portanto, é um movimento compensatório de um déficit de entrega e afeto. O temor das trocas afetivas, dar e receber em igualdade, gera o machismo. O vazio de amor leva à busca pelo poder. Já que sofre de um déficit crônico de afeto e contato, precisa roubá-lo, assediar, estuprar para recriar algum vínculo, ainda que forçado.

Daí a sua apologia ao pênis e o seu desprezo/horror pelo ânus e a vagina. Na tosca ideologia machista, o falo é dotado de valor e positividade, ao contrário do ânus e da vagina. Se é assim, como lidar com o fato de que os seres são gerados pelas mulheres e é através do canal vaginal que vem ao mundo? A potência de gerar não contradiz a ideia da vagina como um desvalor ou algo negativo e faltante? Essa incoerência é aparentemente resolvida pela concepção de domínio e posse: "a mulher tem o poder de gerar. Mas ela ê minha". A noção de propriedade dos corpos ameniza o vazio da perda do vínculo.

Nesta divisão dos seres entre os penetrantes e os penetrados, ronda o perigo da possibilidade de que os lábios da vagina, por exemplo, forme a boca que devora, da mesma forma que o louva deus macho, ao copular, é comido pela fêmea. O caçador tornar-se-ia, nesta hipótese, a presa caçada. Puro horror.

Daí a valorização do pênis e o temor à violação do (seu) ânus. O primeiro simboliza um suposto poder e, o segundo, uma suposta fraqueza. Se a pele separa o campo do que é externo ao corpo do que é interno, o ânus não está fora do corpo. Assim, o horror aos gays pode ser associado à vergonha ligada ao ânus.

O horror do machismo aos gays delata o temor do ser do outro vir a desmascara-lo em seu embuste. Estes passam a ser o espelho do que o machão não quer ver em si mesmo. O pai machista diz ao filho: “não faça teatro, pois é uma escola de bichas”. Certamente, supõe que, se seu filho seguir esse caminho, pode correr o risco de desbundar e transviar-se. Precisa se conter!

A ideologia do machismo consegue ser elástica ao ponto de permitir a um machão relacionar-se com um igual sem que venha a considerar-se gay, desde que assuma um papel ativo...

Além de seu caráter embusteiro, a opressão do feminino pelo machismo, por seu turno, delata a sua covardia. Covardia de assumir o seu feminino interior, projetada exteriormente num medo às mulheres. Daí a necessidade de controla-las e domina-las. Covardia de manipular o poder para explorar o outro e não se livrar dos próprios medos.

Proibido culturalmente de chorar, ou falar de seus sentimentos, só resta ao machāo endurecer-se, petrificar-se e fingir ser o que não é. Virar um embusteiro. Por isso, é bem raro um machão permitir-se fazer terapia. O pavor dos seus sentimentos mais profundos o interdita. A verdade faria ruir sua visão de mundo.

Eu não escrevo movido por qualquer raiva do machismo. Se não houvesse em mim algum nível dele, jamais o compreenderia. “Nada do que é humano me é estranho”.

Dissecar o machismo é revirar o que encontro dele em mim. Exige que eu seja um Quirão (terapeuta) de mim mesmo. O olho do cirurgião também é olhado de fora, por mim.

O cadáver que o cirurgião autopsia é o seu próprio corpo.

José Ramos Coelho 16/agosto/1922

sexta-feira, 22 de maio de 2020

A FALÊNCIA DO HOMO SAPIENS E A MORTE DA CULTURA


Uma mentira sozinha é apenas uma mentira. Uma mentira compartilhada é uma verdade coletiva (Filosofia das Fake News).
Um dos equívocos mais longevos e duradouros da história - oriundo de uma tradição que remonta a Sócrates, Platão e Aristóteles - consiste na definição do homem como um animal racional (bios logoin).
Esse erro milenar alcançou a sua consagração máxima na filosofia cartesiana com a tese do “cogito, ergo sum”: penso, logo existo. Definindo o homem como uma “coisa pensante”, Descartes eleva a razão à categoria de essência humana, propondo ainda a matematização do saber e os fundamentos do paradigma científico em vigor desde o início da modernidade.
Essa tese da racionalidade humana começou a ser combatida com vigor pelo filósofo Schopenhauer, sendo retomada a seguir por Nietzsche e aprofundada pelo pai da psicanálise, S. Freud e muitos outros. Para Schopenhauer, a razão é tão somente um instrumento usado pelos humanos na luta pela sobrevivência. O motor do agir humano reside, segundo ele, não na razão, mas sim na vontade. Pouco mais tarde, Freud dirá algo semelhante ao formular a sua teoria das pulsões, especialmente a pulsão de vida.
Em sendo verdade o homem não ser propriamente um animal racional, o que ele é afinal? Um animal simbólico, afirma Ernest Cassirer, numa profunda e abrangente definição que engloba tanto o aspecto da racionalidade propriamente dita, operacionalizada através da linguagem e da lógica, quando o pensamento mítico, mágico e religioso, que é viabilizado pelo uso de símbolos.
Após a psicanálise desvendar a dinâmica do psiquismo e a comprovação pelo comportamentalismo de quão moldáveis e influenciáveis os animais e os humanos são, iniciou-se experimentos de modelagem do comportamento humano e de controle de consciências. O extraordinário sucesso da propaganda política pelo nazismo e sua transposição para a propaganda comercial e a venda de produtos, transformou os indivíduos em massa de manobra, ávidos e fervorosos adeptos de uma nova servidão voluntária. O servo pós-moderno é explorado no trabalho e no lazer, servidão que é tanto mais eficiente quanto é completamente ignorada.
O iluminismo, representante mais ilustre da modernidade, porém, conduziu a humanidade a uma encruzilhada perigosa, na qual se constata a falência e ruína de seus princípios, valores e propósitos. A sociedade racional e científica transformou o homem numa mera peça de uma engrenagem monstruosa. O criador foi devorado pela criatura que ele mesmo criou. Se antes a técnica era um instrumento de quem a utilizava, hoje o homem é um servo da técnica, quer queira ou não.
A situação chegou a um ponto tal que a impressão generalizada que se tem é a de estarmos regredindo à Idade Média, com a volta das pestes, o conflito entre os religiosos e os cientistas, o terraplanismo, os preconceitos e fanatismos mais arraigados, etc.
Na verdade, estamos diante do embate entre dois fundamentalismos – e cada um deles tem as suas vulnerabilidades. Vejamos quais são elas.
O fundamentalismo religioso está avançando no sentido de reapropriar-se do poder político do Estado e seus aparelhos, do qual fora banido a partir das teses de Maquiavel, da burguesia liberal e dos iluministas.
É dogmático e combate a ciência. Para alcançar seus objetivos, recorre a todos os expedientes, especialmente às fake news. Arregimenta aliados no estamento político e tenta impor os seus propósitos ao conjunto da sociedade, manipulando a consciência de seus fiéis através de uma organização extremamente eficiente e do uso de hipnose coletiva.
Aqueles que surfam associados a ele disseminam informações do tipo: “A terra é plana”. “Ingerir detergente mata o coronavírus”. “O coronavírus é uma gripezinha”. Essas afirmações absurdas não são percebidas como tais em virtude da perda de referenciais confiáveis. Vivemos numa espécie de neoprotagorismo, onde a verdade é o que se afigura a cada um, de acordo com o seu ponto de vista. O indivíduo é que sabe a medida do que é verdadeiro ou não.
Ora, com a disseminação de fake news produziu-se uma síndrome generalizada de distorção perceptiva da realidade a partir da manipulação de consciências através de algoritmos obtidos pela venda de dados de perfis pessoais. Hoje quem pensa é na verdade pensado, quem escolhe é na verdade conduzido a escolher a partir das informações manipuladas que recebe pelas redes sociais e que orientam as suas escolhas. A vida digital que estamos vivendo é a prova mais cabal de que os humanos não são seres racionais. É inútil tentar demover alguém pertencente a esse grupo de suas crenças. Não é apenas a repetição de uma mentira que pode fazê-la parecer uma verdade. Uma mentira sozinha é apenas uma mentira. Uma mentira compartilhada é uma realidade coletiva. Vivendo em “bolhas”, esses grupos criam as suas verdades e fazem delas o sentido de suas vidas. O poder avassalador desta crença é tão intenso que pode induzir alguém à tirar a própria vida, como as trinta pessoas que vieram a óbito ao ingerir detergente para lutar contra o coronavírus.
No extremo oposto, temos o fundamentalismo da racionalidade: cientistas, políticos, técnicos, pensadores que combatem essas fake news com base em argumentos científicos e racionais. E porque dizemos que essa perspectiva é um fundamentalismo? Porque, como as fake news, atua como um vírus, reformatando a cultura e a tradição.
O vírus da racionalidade é extremamente perigoso. Ele não é propriamente um organismo biológico, mas um software – um conjunto de instruções, informações e procedimentos interligados, formando uma totalidade articulada em torno de um objetivo.
Ao espalhar-se pelos diversos estratos sociais, enfraquece as tradições, dissemina a dúvida e o poder corrosivo da crítica. Ao longo da história, esse programa criou a linguagem escrita e o dinheiro, a partir dos quais a civilização tornou-se possível. A linguagem e o dinheiro viabilizaram o surgimento da técnica e da ciência, tal qual a conhecemos. Como resultado de tudo isso temos um planeta onde os últimos recursos naturais estão sendo devastados, a biodiversidade dizimada, os rios, mares e ares poluídos, uma civilização que busca o crescimento a todo o custo em detrimento da saúde da Terra, e uma humanidade onde uma ínfima minoria detém o monopólio da riqueza e uma imensa maioria vive na miséria. A hipertrofia da ciência e da técnica provocou uma atrofia de valores e de ética, uma insensibilização dos afetos, a ponto de assistirmos a tudo isso sem qualquer indignação ou revolta.
Dir-se-ia, no entanto, que nada disso tem a ver com a racionalidade e a ciência. O avião é um invento neutro, nem bom nem mau. Se usado para aproximar as pessoas, tornar-se-ia benéfico. Se empregado para lançar bombas, um veículo da morte. Mas as coisas não são simples assim. A visão que uma pessoa adota da realidade se altera caso ela caminhe a pé, a cavalo, de carro ou avião. O meio muda a mensagem. O caminho afeta o caminhar e o andarilho.
A invenção da escrita alterou os afetos e as relações sociais, produzindo o pensador solitário e independente. A criação da moto-serra ampliou infinitamente a devastação da flora. As indústrias empestaram o ambiente com resíduos e poluentes.
Somos uma civilização de seres narcísicos, solitários, ansiosos, depressivos, individualistas e adoradores do sucesso e da aquisição de bens materiais. A vida moderna embruteceu os indivíduos, atrofiou a solidariedade e a compaixão pelas diversas formas de vida e os outros seres.
Temos assim dois grupos de fundamentalistas, cada um dos quais se julgando o detentor da verdade.
Essa perda da capacidade homeostática da cultura, na qual os fundamentalistas religiosos usam até o nome do Cristo para disseminar o ódio e os preconceitos mais insanos, e os cientistas põem todo o seu gênio criativo a serviço da criação de uma tecnologia altamente predatória e nefasta ao meio ambiente, é uma eloqüente expressão da morte da cultura.
A pandemia do coronavírus veio para explicitar a falência de valores do homo sapiens, e a necessidade urgente da adoção de uma nova filosofia de vida e visão de mundo, onde a humanidade abandone o papel de câncer letal e metastático do planeta, e rume em direção a uma pós-cultura onde imperem a solidariedade e a empatia entre os humanos. E as leis da economia estejam subordinadas aos princípios vitais da ecologia.
O que estamos vivendo resulta da destruição dos mais remotos ambientes naturais do planeta, onde os vírus habitam. Se deixarmos os vírus em paz, respeitando a Natureza, as plantas e os animais, a humanidade pode reencontrar o caminho da sobrevivência.
Caso a devastação continue, certamente será extinta pelos próximos vírus.
José Ramos Coelho – 05 de maio de 2020.