O SENHOR ABSOLUTO
Arte de Viver
sábado, 30 de março de 2024
sexta-feira, 26 de janeiro de 2024
O AMOR CONTIDO: considerações ao livro “Descolonizando os afetos” da pensadora guarani Geni Nuñez.
segunda-feira, 5 de setembro de 2022
LUCIDEZ OU ESTUPIDEZ?
LUCIDEZ OU ESTUPIDEZ?
A lucidez de uma pessoa é
inversamente proporcional ao grau de condescendência que ela tem consigo mesma.
Em outras palavras, a sua reserva de lucidez é diretamente proporcional à
intensidade de contrariedade que ela cotidianamente impõe a si mesma.
Essa é uma questão crucial. Talvez o
tema mais importante para alguém que deseje realmente tornar-se um ser livre e
racional.
Voltemos então a repeti-lo: o nível
de consciência de uma pessoa depende de quão constantemente ela se põe à prova,
se questiona, duvida dos seus valores ou crenças e testa os seus limites.
É preciso reconhecê-lo: atingir algum
grau de lucidez não é nada fácil. Alcançá-la exige desapego, ousadia, coragem e
uma boa dose de esperança.
Desapego – de todos os hábitos
arraigados. Ousadia – em experimentar algo inteiramente novo. Coragem – em
saltar no abismo do desconhecido, abandonando o solo firme do já consolidado,
do assimilado, do mundinho familiar. E esperança em acreditar que é possível
sair do cativeiro.
Em suas Meditações Metafísicas, o
filósofo Descartes, um dos maiores gênios da humanidade, faz uma proposta
altamente audaciosa: que colocássemos em dúvida todos os nossos conhecimentos
anteriores, submetendo-os a uma dúvida metódica a fim de verificar, após esse
processo exaustivo de auto inquirição, o que existe de verdadeiro ou falso
naquilo que aceitamos. Quem teria a coragem e determinação para um
empreendimento dessa magnitude?
Talvez esse seja o desafio mais
difícil e inquietante a que um ser humano possa se dedicar. É por isso que, em
sua imensa maioria, as pessoas encontram-se num processo de completo estupor,
ou seja, vivem como meros autômatos, seguem padrões pré-estabelecidos,
preconceitos, programas pré-fabricados, agindo como robôs. A sombra da
inconsciência as domina por completo. Enroladas no círculo vicioso das
repetições sem fim, elas vivem como Sísifo realizando o seu eterno castigo.
Não causa surpresa, portanto, o fato
de que muitas delas, mesmo quando desejam livrar-se dessa Roda de Samsara, não
o conseguem. Acabam voltando ao mesmo ponto: seja o desejo de não cometer os
mesmos erros de sempre, de seguir a dieta tão sonhada, de realizar tudo aquilo
que sabe perfeitamente ser benéfico para si... e não o conseguem. A força da
inércia é maior do que elas mesmas.
Como um ser que não tem mais controle
sobre si mesmo, pode considerar-se um ser racional, um “homo sapiens”? Com
muito mais razão, dever-se-ia defini-lo como um “homo demens”, um ser cujo
sintoma mais característico é a perda de sua liberdade e a renúncia à
autogestão de sua própria vida.
O terrível, o sinistro, o assustador
é constatar que somos o tempo todo condicionados a sermos peças de uma
engrenagem que se retroalimenta. E, ainda pior: muitos se vangloriam e se
comprazem com esse condicionamento em massa, dependendo do nível em que se
situa dentro dessa hierarquia de controle que os domina e à qual
voluntariamente servem.
Apesar de toda essa tendência
onipresente, é possível acender uma luz na escuridão. Está ao nosso alcance, em
cada instante de nossa vida, seguir a roda viva - ou não. Podemos fazer
diferente. Exercitar a divina arte de sermos únicos, originais, inconfundíveis.
Concluo com a profunda e penetrante
reflexão do grande Dostoiévski:
“Somos assim: sonhamos o voo, mas
tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do
vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da
liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas.
Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas
moram”.
José Ramos Coelho – 02 de agosto de
2020.
OS BLOQUEADOS E IMPEDIDOS
No apoteótico rito de passagem que ocorre todo final de ano, as pessoas do mundo inteiro se reúnem para celebrar o ano que se inicia e dar-lhe as boas vindas, fazendo os seus votos de um ano melhor e mais feliz.
A grande maioria, no entanto,
fracassa nos seus votos, fazendo desse rito de passagem um retorno ao ponto de
partida. Qual a razão desse malogro generalizado e coletivo?
O motivo fundamental é que todos nós,
em graus variáveis, somos bloqueados e impedidos.
O nível mais grave de impedimento
reside naqueles que se identificam completamente com a sua posição na
existência. Acreditam que "pau que nasce torto morre torto", e
orgulham -se de seus defeitos e vícios. Quando falam de si, sorriem ou mesmo
gargalham - o que patenteia o seu apego ao seu estilo de vida. São os
reincidentes.
Há um grupo intermediário que deseja
realmente que as coisas melhorem, se esforça,, traça planos e se empenha
verdadeiramente em sua implementação. Nutre o desejo e a esperança reais em
evoluir e melhorar. No entanto,, tão logo começa a alcançar os seus propósitos,
titubeia, recua, oscila e acaba pondo a perder tudo o que conquistou a duras
penas. Ditas pessoas vivem divididas em si mesmas. Uma parte deseja o progresso
e outra acredita não merecer nada de melhor. Por isso, ao agir, uma mão faz e
realiza, enquanto a outra desfaz e neutraliza.. Esses são os sabotadores.
Há, finalmente, aqueles poucos que
fluem pela vida como a agua: quando encontram um obstáculo em seu caminho, o
contornam e seguem adiante. Não há dentro de si nenhum entulho que atrapalhe o
seu fluir ligeiro. Alcançam sem bloqueios os seus intentos e propósitos. Esses
são os libertos.
O que faz uma pessoa ser um impedido,
um sabotador ou um liberto? O que leva alguém a não querer sair do lugar,
enquanto outros realizam viagens épicas?
Fundamentalmente é a imagem que fazem
de si mesmas. As pessoas vivem a vida que acreditam se adequar aos seus
pensamentos ou aos seus esquemas mentais.
Aprofundemos um pouco mais a questão.
O que leva alguém a optar em ser um reincidente?
Normalmente esses indivíduos tiveram
modelos parentais envoltos em fracassos na vida. Dar-se mal em tudo parece ser
a regra constante dessas pessoas. Ou, então, tiveram país aparentemente bem
sucedidos mas que, aos olhos dos filhos, não eram exemplos a serem seguidos. E
, por isso, para afronta-los, preferiram ser bem "errados".
Já os sabotadores situam -se num
plano diferente. Vivem imersos numa conflagração interior, onde um lado quer
avançar e outro não o permite. Quando, com muito esforço, dá um passo à frente
se inquieta e logo anda dois para trás. O que guia o seu comportamento é uma
crença de "não merecimento", a qual orienta a pessoa a recusar ou
desfazer qualquer realização positiva.
Finalmente, os libertos são gratos e
gentis. Seus sentimentos amistosos e amorosos os levam a superar todos os
entraves que surgem em seu caminho, contornando-os. São leves e graciosos. Por
onde passam irradiam alegria, fertilidade e esperança. Por isso, superam-se a
cada dia. E quando chegamos a vê-los depois de algum tempo, já são outros e bem
diversos. A vida é, para eles, um constante fluir e crescimento.
Que saibamos aos poucos migrar do
peso da estagnação à leveza fluida da incessante auto-superação.
José Ramos Coelho - 04 de setembro de
2020
ENCENAÇÕES
ENCENAÇÕES
Shakespeareanamente falando, a vida é
um palco – e nós, atores ou figurantes nesse vasto teatro da existência.
Os atos e cenas que represento sempre
foram objetos de assíduas reflexões. Como num metafísico jogo de
esconde-esconde, continuamente fico a procurar onde me escondi e ocultei de mim
mesmo. Talvez seja essa a grande tragédia da existência: acreditar ser o que
não se é. Tomar a aparência como se fosse a essência, o ser em seus momentos de
ocultamento, e não de revelação. Daí, talvez a grande virtude da socrática
ignorância: saber que não se sabe. Olhar para além do fenômeno. Escutar o som
do silêncio.
Camuflo-me de mim com frequência ao
procurar amoldar-me às expectativas alheias ou me apegar às meras repetições do
que fiz. Ou, inversamente, ao esperar que os outros se conformem às minhas...
Quando seguro algo firmemente no
intuito de retê-lo, a impermanência da vida logo trata de retirá-lo de mim e
dissolve-lo entre os meus dedos. E eis-me frustrado e inconformado.
Na verdade, o que guardamos,
perdemos. E o que doamos, levamos. Por isso, talvez o verdadeiro núcleo do
existir não esteja encerrado no fundo do ser, mas na potência da relação, no
dar e receber, no intercâmbio de afetos e ideias, nas trocas profundas e
inenarráveis.
O que sou torna-se então inefável, já
que as referências fixas me aprisionam e empobrecem.
Talvez por isso sempre me evadi das
cristalizações, dos enrijecimentos esclerosados, manifestando visceral
antipatia pela maestria e uma simpatia pelo amadorismo. Quando fazemos muito
uma coisa só, tornamo-nos peritos e especialistas na dita modalidade – e
ficamos presos a ela. Ela passa a nos consumir e a nos definir. Assim, como um
nômade de mim, tão logo percebo estar me assenhorando de algum ofício ou
deitando raízes numa determinada atividade, logo sobrevém uma inquietação, um
desassossego – e lá vou eu em busca de novas paragens, conhecimentos outros,
descobertas.
Quem me vê, dificilmente me reconhece
verdadeiramente. Ao querer encontrar uma faceta de mim, visualiza outras que
não esperava e se desconcerta neste caleidoscópio em movimento ao qual
atribuíram um nome. Se estou em busca de mim, quem me procura num velho lugar
já estou em outro, alhures.
Vivo no contrafluxo da multidão que
valoriza
a aparência – e não a essência
o ser – e não a relação
a posse – e não busca
a produção – e não a contemplação
a especialidade – e não a
generalidade
a ciência – e não o mito.
Meu ofício nesta vida talvez seja o
de um simples rasgador de papéis, um faxineiro das máscaras, um eterno aprendiz
de mim mesmo.
José Ramos Coelho - 02/07/2022.
PSICOLOGIA DO GADO
PSICOLOGIA DO GADO
O entendimento da idolatria de grande parcela da população ao “mito”
extrapola em muito os limites da economia e da qualidade de vida. Por que quase
1/3 da população brasileira ainda apoia o inominável? Qualquer pessoa
minimamente bem informada sabe que o governo atual é útil apenas para uma
parcela ínfima do povo. Se a economia fosse a razão e suporte de tão expressivo
apoio, apesar do fracasso retumbante em todos os níveis, ele teria menos de 5%
de apoio entre os brasileiros. Mas não: continua firme e forte entre os seus
apoiadores. O que explica a adesão dos demais?
Conheço pessoas que perderam o emprego, tiveram seus negócios falidos,
pioraram consideravelmente de vida – mas, mesmo assim, continuam votando no
“mito”. Trata-se daquele tipo de fascínio que é imune a qualquer argumento
razoável e racional. Estão vacinados contra a lucidez, o bom senso e a civilidade.
Há, contudo, uma explicação para esse comportamento aparentemente
absurdo e intrigante. E a origem disso reside na psicologia do inconsciente.
‘Narciso acha feio o que não é espelho”, afirmou Caetano Veloso. Há algo
de singelo e profundo nesta frase do genial poeta e compositor. Esta afirmação
está ligada à teorização de Freud acerca dos dois tipos de amor: o narcísico e
o de apoio (anaclítico). O amor narcísico é o amor do semelhante pelo
semelhante. O anaclítico é aquele em que gostamos de quem nos apoia, nos
respeita, nos considera.
Pois bem. Todos devem conhecer alguém que vive preso a um relacionamento
em que o parceiro maltrata, machuca, trai o outro e, mesmo assim, o outro não
consegue deixar de gostar e largar o relacionamento abusivo. Esse é um típico
caso de atração narcísica: o parceiro maltratado e desconsiderado se identifica
com o lado “mau” do companheiro, e no fundo gostaria de ser como ele. Quem o
vê, acha que ele é masoquista e “gosta de apanhar”. Esse é, na visão de Freud,
um relacionamento narcísico (o lado mau de um admira e cultua o lado mau do
outro).
Outras pessoas, no entanto, quando descrevem quando encontraram o seu
príncipe ou princesa, falam que o romance foi se construindo aos poucos. De
início não chamaram atenção. A cada encontro, percebia algo cativante n@ outr@
- um jeito de olhar, uma disponibilidade protetora e amiga, alguém em quem se
podia confiar. A presença do outro transmitia confiança e bem estar. Essa é a
típica atração anaclítica (de apoio).
Aí reside a força que o “mito” exerce sobre os seus seguidores. Quando
ele faz discursos racistas, quando elogia torturadores, ameaça matar
opositores, humilha as mulheres, esse comportamento politicamente incorreto, ao
invés de enfraquece-lo, tem o efeito exatamente contrário: realimenta a ligação
narcísica entre o “mito” e quem o idolatra.
Por que ele é mais popular entre os homens do que entre as mulheres?
Porque a maioria dos homens teme as mulheres, não confia nelas, gostaria de
tê-las sob o seu domínio e controle, cometendo todo o tipo de abuso e, mesmo assim,
elas continuassem sendo as suas Amélias. As outras que o apoiam se identificam
com a sua crueldade, pois trazem em si uma crueldade reprimida, que o outro
exibe sem nenhum pudor.
Por que a classe média, mesmo perdendo qualidade de vida, continua a apoiá-lo?
É porque observa que os aeroportos não estão mais apinhados de gente simples -
aquelas que trocaram a viagem de ônibus pelo avião - e que, agora, está mais
fácil de pagar um salário baixo a uma empregada ou de submetê-la a condições
degradantes, pois ela está sem ter como se virar se perder o emprego. Ruim com
ele. Pior sem ele.
Quando o “mito” exalta o assassinato e a tortura, fazendo acenos
golpistas, a mensagem explícita de tirania ressoa profundamente no tiranete que
habita cada um de seus seguidores – seja a patroa que gostava de humilhar a
empregada, o homem abusador que aprecia humilhar ou assediar as mulheres, a
pessoa de pele clara que, para se sentir superior, ofende os negros ou pardos,
tratando-os como se fossem inferiores. O lado tirânico da multidão se
identifica com a tirania do líder.
Os estudiosos de psicologia do inconsciente, ao pesquisar o efeito das
campanhas de propaganda realizadas para dissuadir os fumantes do vício,
constataram algo paradoxal e estarrecedor: aquelas imagens terríveis de
enfermos em estado terminal, coladas no verso da carteira, ao invés de
desestimular o consumo dos cigarros, ativava uma parte do cérebro chamada de
“núcleo accumbens”. Essa região é despertada na presença de algo motivador – um
alimento, um estímulo sexual, um vício... Se a maldade é erotizada, comportamentos
imorais e abusivos deixam essa parte do cérebro excitada e acesa.
Nesta conformidade, todo poder de fascinação do “mito” reside na
ativação desse “núcleo accumbens”. É por isso que, dia sim e outro dia também,
o inominável precisa reincidir em algum crime, falar alguma asneira, cometer
alguma obscenidade. E, por esse motivo, não há razão ou argumento que consiga
demover alguém de continuar apegado ao seu ídolo.
Mas nem tudo no bolsonarismo ê maldade explícita: há também o apelo a
Deus, à pátria e à família. Nesse ponto, a identificação é pelo medo: pessoas
conservadoras temem perder seus privilégios ou ver periclitar os valores e os
bens que constituem a base de sua vida. Assim, compreende-se o empenho,
especialmente no meio religioso conservador, em disseminar o perigo do
homossexualismo, do aborto, da pedofilia. Esse apelo serve de base à narrativa
de pertencimento ao exército do bem, em luta contra o mal (os outros, os
comunistas, os pervertidos, os corruptos, etc.). O que há ou não de hipocrisia
e cinismo nesse discurso é devidamente dissimulado através de um marketing
cuidadosamente dirigido e planejado.
Desta forma, com base tanto no ódio quanto no medo, consegue-se distorcer a imagem do Cristo, associando-o à intolerância, ao ódio e às armas.
"O sono da razão produz monstros" (Goya)
ANATOMIA DO MACHISMO
Três elementos saltam aos olhos na
anatomia do machismo para uma análise mais detida: o pênis, o ânus e a vagina.
A vagina seria o não-pênis, a ausência dele – ou a castração, segundo Freud. Os
três são órgãos relacionais, ou seja, fazem a conexão entre o dentro e o fora.
Essa tópica corporal poderia ser
associada a uma tópica mental, constituída pela construção ideológica de três
papéis distintos, porém interligados: o machão, o gay e a mulher.
Ora, toda afirmação só adquire
sentido a partir de uma negação que a sustenta. Se eu digo: “É dia”, essa
afirmação só se torna compreensível a partir da percepção de que, de fato, não
é noite. Sem a noite não haveria o dia, e vice-versa. Ou, como diria o grande
Spinoza, “toda determinação implica numa negação”.
As leis que regem o mundo externo são
as mesmas que comandam o campo do psiquismo. Segundo Newton, toda força
aplicada a algum objeto recebe a ação de outra força igual e contrária que a
resiste. Para que o objeto seja deslocado, a força aplicada precisa ser maior
do que a resistência oposta.
Pois bem: o canto de Ossanha do
machismo é duplamente traidor. Denuncia tanto o seu embuste quanto sua
covardia. Quem diz – sou macho, já não é. Quem é, não o diz. O que é ser
machão? É colocar-se numa posição de força, de virilidade, de poder frente a
outro. Que outro(s)? Os gays e as mulheres.
Estamos então, esquematicamente,
diante da seguinte classificação sexista e ingênua:
Homem – pênis.
Gay – ânus.
Mulher – Vagina.
Portanto, o machismo adota uma visão
unipolar: o pênis é o órgão do caçador, é o ativo, o que – supõe-se – penetra.
Já o ânus e a vagina, seriam orifícios penetráveis, passivos.
Essas correspondências entre a
anatomia e a psicologia só podem ser adequadamente interpretadas e
compreendidas a partir do que elas ocultam, quer dizer, de suas fragilidades.
A fragilidade do machão é possuir um
ânus. E o seu temor é virar gay.
Ser gay, supostamente, seria optar
pela entrega e não pelo lugar de poder socialmente estabelecido. Por isso todo
o esforço do machão é afirmar-se como macho, virilizar-se, encher-se de
soberba. Prefere mais ser temido do que amado. A máscara de coragem é o melhor
disfarce para o seu medo de que descubram quem ele realmente é.
Ao colocar-se numa posição
hierarquicamente superior ao(s) outro(s), inevitavelmente se distancia dele(s).
Nesse sentido, a idealização do poder pelo machismo resulta da castração da
entrega, associada ao ânus e à vagina. Quando a cidadela é fortemente murada,
os seus vínculos com as comunidades circundantes tornam-se controlados,
vigiados e restritos.
O machismo, portanto, é um movimento
compensatório de um déficit de entrega e afeto. O temor das trocas afetivas,
dar e receber em igualdade, gera o machismo. O vazio de amor leva à busca pelo
poder. Já que sofre de um déficit crônico de afeto e contato, precisa roubá-lo,
assediar, estuprar para recriar algum vínculo, ainda que forçado.
Daí a sua apologia ao pênis e o seu
desprezo/horror pelo ânus e a vagina. Na tosca ideologia machista, o falo é
dotado de valor e positividade, ao contrário do ânus e da vagina. Se é assim,
como lidar com o fato de que os seres são gerados pelas mulheres e é através do
canal vaginal que vem ao mundo? A potência de gerar não contradiz a ideia da
vagina como um desvalor ou algo negativo e faltante? Essa incoerência é
aparentemente resolvida pela concepção de domínio e posse: "a mulher tem o
poder de gerar. Mas ela ê minha". A noção de propriedade dos corpos
ameniza o vazio da perda do vínculo.
Nesta divisão dos seres entre os
penetrantes e os penetrados, ronda o perigo da possibilidade de que os lábios
da vagina, por exemplo, forme a boca que devora, da mesma forma que o
louva deus macho, ao copular, é comido pela fêmea. O caçador tornar-se-ia,
nesta hipótese, a presa caçada. Puro horror.
Daí a valorização do pênis e o temor
à violação do (seu) ânus. O primeiro simboliza um suposto poder e, o segundo,
uma suposta fraqueza. Se a pele separa o campo do que é externo ao corpo do que
é interno, o ânus não está fora do corpo. Assim, o horror aos gays pode ser
associado à vergonha ligada ao ânus.
O horror do machismo aos gays delata
o temor do ser do outro vir a desmascara-lo em seu embuste. Estes passam a ser
o espelho do que o machão não quer ver em si mesmo. O pai machista diz ao
filho: “não faça teatro, pois é uma escola de bichas”. Certamente, supõe que,
se seu filho seguir esse caminho, pode correr o risco de desbundar e
transviar-se. Precisa se conter!
A ideologia do machismo consegue ser
elástica ao ponto de permitir a um machão relacionar-se com um igual sem que
venha a considerar-se gay, desde que assuma um papel ativo...
Além de seu caráter embusteiro, a
opressão do feminino pelo machismo, por seu turno, delata a sua covardia.
Covardia de assumir o seu feminino interior, projetada exteriormente num medo
às mulheres. Daí a necessidade de controla-las e domina-las. Covardia de
manipular o poder para explorar o outro e não se livrar dos próprios medos.
Proibido culturalmente de chorar, ou
falar de seus sentimentos, só resta ao machāo endurecer-se, petrificar-se e
fingir ser o que não é. Virar um embusteiro. Por isso, é bem raro um machão
permitir-se fazer terapia. O pavor dos seus sentimentos mais profundos o
interdita. A verdade faria ruir sua visão de mundo.
Eu não escrevo movido por qualquer
raiva do machismo. Se não houvesse em mim algum nível dele, jamais o
compreenderia. “Nada do que é humano me é estranho”.
Dissecar o machismo é revirar o que
encontro dele em mim. Exige que eu seja um Quirão (terapeuta) de mim mesmo. O
olho do cirurgião também é olhado de fora, por mim.
O cadáver que o cirurgião autopsia é
o seu próprio corpo.
José Ramos Coelho 16/agosto/1922